Quem Sou Eu
Uma pergunta que deveríamos fazer em algum momento de nossas vidas é: estou confortável em ser quem eu sou? O problema é que aliadas a essa pergunta surgem várias outras: o que é estar confortável em ser quem eu sou?, quem sou eu?, o que é estar confortável?, como posso me sentir confortável se não estou bem?, estar bem e sentir confortável é a mesma coisa?... Inúmeras outras questões poderiam ser colocadas a partir daí. Por onde começar?
NEUROCIÊNCIA E COMPORTAMENTO


Uma boa estratégia (mas não a única) para começar a responder essa pergunta é fazer uma honesta autoavaliação. Aqui começa outro problema... Contar a verdade sobre nós mesmos para nós mesmos não é uma tarefa simples. Um elemento dificultador é a nossa “mais honesta” convicção de que nos contamos a verdade (podemos até mentir para os outros, mas para nós mesmos, não. Será?).
Retomando. Seja como for, as teorias concordam que o bebê precisa de algo externo a ele que possibilite sua constituição como ser (seja lá o que isso for – a filosofia se debruça sobre esse tema há milhares de anos!). Ou seja, nada surge do nada (exceto o Big Bang!).
Do ponto de vista do Behaviorismo, falar em sujeito é quase uma licença poética, pois aqui é o comportamento que está em análise. A interação entre o organismo e o ambiente tem apenas função biológica adaptativa; ele é determinado e definido a partir das contingências, do reforçamento positivo ou negativo, da punição[1].
Coube a Aaron Beck trazer o sujeito, por assim dizer, para o campo das psicologias comportamentais (ou cognitivo-comportamental, como se define). Para Beck[2], por uma série de contingências, o sujeito constrói uma avaliação distorcida da realidade, de seus eventos, acarretando um funcionamento desadaptativo, adoecedor, afetando negativamente os sentimentos e o seu comportamento. Assim, entra em cena a interpretação da realidade pelo sujeito, pois é a forma como o sujeito interpreta um fato é que determina como ele se sente e se comporta e não o fato em si (como já havia nos dito o estoicismo há algumas centenas de anos). Alguns autores entendem que o sujeito possui necessidades emocionais para se desenvolver e estabelecer relações saudáveis e, quando elas não são supridas, utilizam esquemas desadaptativos (teoria do esquema[3]), na tentativa se supri-las.
Do ponto de vista da Psicanálise[4], o desejo dos pais projetado sobre a criança, a interação da criança com seus primeiros cuidadores, os mecanismos de defesa arcaicos e uma quantidade significativa de outros entrelaçamentos, faz surgir duas instâncias que Freud chamou de eu ideal e
o ideal de eu. Essas duas instâncias são duas vertentes que impulsionam a constituição do sujeito. Freud conceitua o eu ideal como algo inatingível; é a perfeição. Não aquela que está no horizonte como motivadora, colocando-nos sempre em busca da melhoria assertiva, mas aquela que massacra, que é um imperativo, um apontamento que, muitas vezes, pune o sujeito pela não perfeição. Esse eu ideal incorpora a onipotência, o irrepreensível, o imaculado. Ele é o resultado do narcisismo dos pais (para bem e para mal).
Por outro lado, o ideal de eu é o horizonte; aquilo que se quer ser, aquilo que nos motiva à busca, ao aprendizado, ao crescimento. O ideal de eu é influenciado pelo meio que vivemos, pela cultura que estamos imersos, pelos valores morais que introjetamos ou rejeitamos, pelo espírito crítico.
E ENTÃO, COMO RESPONDER À PERGUNTA QUEM SOU EU?
O grande obstáculo à honesta resposta a essa pergunta é se desvencilhar daquilo que acreditamos que somos para começarmos a enxergar quem realmente somos. Não pegarei leve dizendo que é simples. Não é! Essa é uma das coisas mais difíceis de se fazer. Na teoria, sempre falamos a verdade para nós mesmos, mas na prática, escondemo-nos atrás de uma cortina ilusória. Enxergamo-nos, algumas vezes, muito melhores do que somos de fato; outras, muito piores. Acreditamo-nos mais honestos, mais compromissados, mais leais, mais pontuais, mais compreensivos, mais empáticos, mais inteligentes, enfim, mais super do que somos de fato. Ou menos. Desnivelar, tanto para um lado quanto para outro, é desnivelar.
O que somos está imerso em uma trama do ideal de eu, do eu ideal, da nossa interpretação dos eventos que nos acontecem, dos reforçamentos e punições que sofremos, etc, etc, etc. Somos multifacetados. Como disse o poeta Fernando Pessoa: “eu não sou eu nem sou o outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Porém, saber isso não basta quando precisamos adquirir mais consciência sobre nós mesmos e sobre o micro mundo que nos cerca. É preciso ir além.
Uma imagem que ajuda é pensar que estamos em um museu olhando para um quadro de 15 metros de altura por 30 de comprimento. Só que estamos com o rosto colado no quadro. Não é possível “ver” efetivamente esse quadro. Para vê-lo, é preciso dar alguns passos para trás, tomar distância.
Dar esses passos para trás começa com um exercício diário e exaustivo de autorreflexão. Começando com o desmembramento da pergunta “quem sou eu”. Inicie pelo mais fácil: sou. Retire o quem e o eu. Enumere, liste. Conte para você mesma/o o que você é. Analise sem julgamento. Não floreie, não minta. Ninguém vai ficar sabendo, só você. Liste o que você tem de bom, o que lhe agrada, o que não agrada, o que você gostaria que fosse diferente e diferente como. Mas não pense que bastará uma lista! Esse é um exercício exaustivo porque deve ser feito diariamente, para cada coisa que você faz, come, bebe, assiste, etc. Obviamente que não precisa de uma lista escrita. Você fará isso mentalmente. Está comendo algo, pergunte-se se você realmente gosta daquilo ou não e como gosta. Um exemplo que sempre dou é o do ovo. Se você gosta de ovo ou não. Como você gosta de ovo? Frito, cozido, assado, omelete, mexido, estrelado, mais duro, mais mole, com complemento, qual complemento, sem complemento... Agora, imagine-se fazendo isso para tudo, inclusive para aquilo que lhe irrita. Pergunte-se: por que isso me irrita? Foi o que fulano disse ou fez? E se isso que foi dito fosse dito por um desconhecido, também me irritaria? Não? Então não foram as palavras, foi outra coisa. Que coisa? Por quê? Depois de fazer isso um tempo, garanto que você descobrirá coisas a seu respeito que parecerão uma novidade!
Agora você já tem uma ferramenta. Estamos montando uma caixa de ferramentas e, aos poucos, aprenderemos a usar cada uma.
Até o próximo artigo.
[1] Baum, W.M. (2006) Compreender o behaviorismo. Porto Alegre: ArtMed; Chiesa, M. (1994). Radical Behaviorism: The philosophy and the science. Boston: Authors Cooperative.
[2] Beck, J.S. (1997) Terapia cognitiva: teoria e prática (S. Costa, trad.) Porto Alegre: Artmed
[3] Young, J.E., Klosko, J.S. & Weishaar, M.E. (2003). Schema therapy: a practitioner´s guide. New York: Guilford.
[4] FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.




