A Insistência Silenciosa das Coisas Inacabadas

Há uma gaveta na sua casa onde moram os começos. Pode ser gaveta literal - aquela com cadernos pela metade, cursos não terminados, projetos esboçados em guardanapos. Ou pode ser gaveta digital - perfis suspensos, domínios comprados e nunca usados, aquele Notion cheio de abas que você organizou com entusiasmo numa segunda-feira de janeiro. Não importa onde fica essa gaveta. Importa que ela existe. E importa, principalmente, que você não a esqueceu. Porque as coisas que você abandonou não te abandonam de volta.

PROPÓSITO E RECOMEÇOS

Carla Regina Nascimento de Paula

11/10/20259 min read

I.

Tem um tipo de dor que não tem nome em português. É a dor de carregar potencial não realizado. De saber que existe algo dentro de você querendo nascer, mas você continua grávida dele há anos. De sentir o peso das versões de si mesma que você prometeu se tornar, mas adiou. E adiou. E adiou.

Os gregos tinham palavra para tudo. Para o amor entre irmãos. Para o momento exato antes do amanhecer. Para a saudade do futuro. Mas para essa dor - a dor de coisas começadas e não terminadas, a angústia das promessas feitas para si mesma e adiadas indefinidamente - não há palavra.

Só há sintoma. E o sintoma é esse: você fecha a gaveta. Mas não consegue jogar fora.  Porque se fosse só desistência, você descartaria. Mas não é. É pausa fingindo ser fim. É medo disfarçado de prudência. É "ainda não" sendo confundido com "nunca".

II.

O ciclo é assim: você começa. Não importa o quê. Um projeto, um perfil, uma presença, uma promessa. Você começa com aquela coisa nos olhos. Aquele brilho perigoso de quem acredita. 

Três dias depois: entusiasmo. Duas semanas: "isso é mais difícil do que eu pensava". Um mês: silêncio. Seis meses: culpa. Um ano: você evita passar perto daquela gaveta. E então, numa tarde qualquer - pode ser terça, pode ser sábado -, você sente.

Não é pensamento. É sensação. Como se algo dentro de você lembrasse que existe. Como se a coisa que você abandonou te cutucasse de dentro. Delicadamente. Insistente. "E se..." Você resiste. 

Porque já sabe como é. Já caiu nessa antes. Já se empolgou, já começou, já parou. Já prometeu "dessa vez vai" e não foi. Já decepcionou a si mesma o suficiente para desconfiar de todo novo "e se".

Então você empurra o pensamento para baixo. E ele volta. Dias depois. Semanas depois. Volta sempre. Essa é a diferença entre impulso e propósito. Impulso passa. Propósito insiste.

III.

Ele volta porque desistir de verdade tem um som. É um clique. É uma porta que fecha e tranca. É um alívio completo, definitivo, sem resíduo. Quando você desiste de verdade, você não pensa mais sobre aquilo. Não sente falta. Não se pega imaginando "e se". Não tem aquele aperto no peito quando vê outra pessoa fazendo algo parecido.

Desistir de verdade é paz. Mas o que você fez não foi desistir. Talvez foi medo disfaçado de prudência. Talvez foi medo disfarçado de "não é para mim". Mas ele insiste e volta. 

IV.

Eu poderia te dar lista de passos. Poderia te dar método. Poderia te ensinar estratégia para recomeçar "do jeito certo dessa vez". Mas seria mentira. Porque o problema não é método. É que você ainda não sabe por que está fazendo isso. E aqui está a verdade nua:

Tudo que não tem propósito claro vira obrigação. E obrigação cansa.

Você pode começar um projeto com motivação emprestada. "Preciso estar nas redes." "Todo mundo está fazendo." "Vou ficar para trás." Pode até conseguir manter por semanas. Talvez meses. Mas o que acontece quando fica difícil? Quando ninguém vê. Quando ninguém curte. Quando você posta no vazio e o vazio não responde. Se você tiver só motivação externa, você para. Porque não vale a pena.

Mas se você tiver propósito? Aí você continua. Não porque é fácil. Mas porque não conseguir fazer seria mais difícil que fazer.

V.

Propósito não é missão salvadora. Não é "mudar o mundo". Não é grandioso. Propósito não é algo que você encontra. É algo que você constrói. Não está na gaveta esperando ser descoberto. Não é revelação mística que cai do céu enquanto você medita. Não é "sua missão de vida" escrita nas estrelas desde que você nasceu. 

Propósito é o que emerge quando você age. Quando você coloca algo no mundo e observa o que acontece. Quando você fala e alguém responde: "Nossa, eu pensava que era só comigo." Quando você compartilha o que aprendeu e alguém encurta o caminho. Quando você faz algo e percebe: isso aqui me anima mais do que cansa.

Propósito é construído na fricção. Entre o que você sabe e o que o mundo precisa. Entre o que você viveu e o que outros estão vivendo. Entre o que você tem a oferecer e quem aparece para receber. 

Você não vai encontrar propósito pensando. Você vai construir propósito fazendo. E observando. E ajustando. E fazendo de novo. 

Às vezes o propósito começa pequeno, quase tímido: "Eu passei por isso. Foi horrível. Talvez eu consiga encurtar esse caminho para alguém." E aí você fala. E alguém ouve. E algo acontece. E você percebe: ah, então é isso.

Outras vezes começa como incômodo: "como me irrita ver pessoas errando do jeito que eu errei quando existe caminho mais curto." E aí você compartilha. E alguém ajusta. E você vê o ajuste. E você percebe: ah, então isso importa.

Propósito não é decreto. É descoberta gradual do que te move quando você está em movimento. E sim, você precisa de retorno. Não necessariamente dinheiro (embora dinheiro também valide). Mas algum sinal de que isso ressoa. Uma mensagem dizendo "isso me ajudou". Um comentário dizendo "eu precisava ler isso". Uma mudança visível em alguém. Porque ninguém sustenta ação no vazio absoluto.

Propósito não é martírio. É troca. Você oferece algo que você tem. Alguém recebe e transforma. Esse retorno - mesmo que seja só um "obrigada" genuíno - te alimenta para continuar. Então não, você não precisa fazer "mesmo que ninguém veja" eternamente.

Você precisa fazer até alguém ver. E quando alguém vê e responde... Aí você sabe: tem algo aqui. E aí você constrói em cima disso.

VI. 

A pergunta não é "como eu encontro meu propósito?" Essa é a pergunta errada. A pergunta certa é: "o que acontece quando eu faço isso?" Não "qual é meu propósito" (como se fosse objeto perdido). Mas "o que se constrói quando eu ajo".  

Porque você não encontra propósito refletindo sobre ele. Você constrói propósito agindo e observando o que emerge. Então antes de recomeçar, você não precisa ter "clareza de propósito". Você precisa ter clareza de uma coisa só: Por que eu quero voltar a fazer isso? Propósito não precisa ser claro, mas precisa ser sentido.

E não vale resposta emprestada: "Porque preciso." "Porque vou ficar para trás." "Porque fulana está ganhando dinheiro com isso."

Mas vale resposta visceral: "Porque quando eu vejo alguém travada no lugar onde eu já estive, algo dentro de mim se mexe." "Porque eu sei algo que poderia ajudar e me incomoda ficar calada." "Porque quando eu faço isso, algo em mim acorda."

Você não precisa saber o propósito completo antes de começar. Você só precisa sentir a direção inicial. O propósito se revela no caminho. Porque propósito não é mapa. É trilha que você abre andando. E só existe trilha para quem anda.

VII.

Recomeços não são lineares. Você não vai do ponto A ao ponto B em linha reta crescente, gráfico motivacional, sucesso garantido. Você vai. Para. Volta. Tenta caminho diferente. Para de novo. Ajusta. Recomeça por outro ângulo. Isso é como esculpir. Escultor não adiciona. Escultor remove. Golpe por golpe, ele tira o que não pertence até revelar a forma que sempre esteve dentro da pedra.

Assim são os recomeços. Não falhas acumuladas, mas golpes de cinzel. Cada tentativa remove uma camada do que não funciona. Cada pausa te mostra o que falta. Cada volta te aproxima da forma verdadeira. 

VIII.

Existe um segredo. Um segredo tão simples que nem parece verdadeiro: você só constrói propósito fazendo. Não pensando. Não planejando. Não esperando clareza total antes de começar. Fazendo.

Porque propósito não é mapa que você consulta antes de sair de casa. É bússola que você calibra enquanto anda. Mapa exige rota pronta; bússola orienta apenas direção. E aqui está como funciona: você age. Observa o que acontece. Nota o que te anima e o que te esgota. Vê quem aparece e quem ressoa. Sente onde tem energia e onde tem resistência.

E cada vez que você faz isso, a bússola fica mais calibrada. O sinal mais claro. A direção mais óbvia. O propósito mais definido. Não porque você "encontrou" seu propósito. Mas porque você o construiu, ação por ação. Resposta por resposta. Ajuste por ajuste. Pessoa impactada por pessoa impactada.

Até que um dia você olha para trás e reconhece: "Aah. Então é isso que eu faço. É isso que eu construí. Mas você precisa andar primeiro. Ninguém constrói trilha parada. Ninguém calibra bússola sentada.

IX. 

Tem hora que a coisa certa a fazer é parar. De verdade. Não pausar. Parar. E você vai saber que é hora quando: você consegue pensar sobre aquilo sem aquele aperto. Você vê outras pessoas fazendo e só pensa "que bom para elas", sem inveja nem arrependimento. Você passa pela gaveta e não sente nada. Aí sim, você desistiu. E está tudo bem.

Mas se: você evita pensar sobre porque dói. Você vê alguém fazendo e sente aquela pontada. Você passa pela gaveta e acelera o passo. Você não desistiu. Você está com medo. E medo é diferente de desistência. Desistência é paz. Medo é barulho tentando se passar por silêncio. A paz acalma o corpo; a evitação silencia o desconforto. Uma relaxa. A outra anestesia.

X.

Fica a pergunta: por que você continua voltando? Não responda agora. Apenas permaneça com essa pergunta. Sem pressa. Sem julgamento. E quan o a resposta vier — e ela virá, talvez em dias, talvez em meses — você saberá.

Porque não será pensamento. Será sensação. Talvez aquele incômodo no peito que já não dá para ignorar. O corpo fala em tensão, urgência, calor, ansiedade — ele pede proteção. O propósito, porém, fala em direção, inclinação, movimento — ele pede avanço. E distinguir uma coisa da outra transforma tudo.

Aí você recomeçará. Não porque tem a estratégia perfeita. Não porque está pronta. Não porque tem garantias. Mas porque finalmente parou de lutar contra a única coisa que nunca a abandonou: a insistência silenciosa do que ainda quer nascer através de você.

E propósito? Propósito não está na gaveta esperando você encontrar. Propósito está do outro lado da ação. É a coisa que você constrói quando para de esperar permissão. Quando para de esperar clareza total. Quando para de esperar estar pronta.

Propósito é o que emerge quando você finalmente age. E observa. E ajusta. E age de novo. Porque propósito não é achado. É construído. Tijolo por tijolo. Ação por ação. Resposta por resposta. 

E quando você para de fingir... Quando você finalmente abre a gaveta... Quando você permite que a coisa inacabada respire de novo... Algo muda. Não no mundo. Em você.

Você descobre que não estava carregando fracasso. Estava carregando possibilidade. E possibilidade não é coisa pronta. É coisa que se faz. Fazendo. Errando. Ajustando. Fazendo de novo. Até que uma manhã você acorda e percebe: aquilo que você tentou tantas vezes... Não era propósito perdido. Era propósito se construindo.

Não porque você encontrou a resposta certa. Mas porque você parou de procurar respostas e começou a construir caminhos. E essa, essa é a única diferença entre quem desistiu e quem chegou. Quem desistiu esperou encontrar o propósito. Quem chegou saiu construindo.

Número de ações que você permitiu. Número de tentativas que você não abandonou antes da hora. Número de ajustes que você fez no meio do caminho.

A gaveta não guarda seu propósito. Ela guarda seus começos. E todo começo é matéria-prima. Para o propósito que você vai construir. 

Andando.

A gaveta guarda semente. E semente não é coisa morta. É coisa esperando. Esperando a estação certa. Esperando você parar de ter medo. Esperando você lembrar que não precisa estar pronta para começar. Você só precisa começar. E o resto? O resto é plantar. 

De novo.

E de novo.

E de novo.

Até que um dia algo muda — não no resultado, mas no processo. Você percebe que, em vez de repetir o antigo padrão de interromper, conseguiu sustentar um pouco mais de desconforto.

Esse pequeno “a mais” é onde o cérebro reaprende. É onde a ansiedade perde força.
É onde o comportamento deixa de ser fuga e começa a ser construção.

E então surge o primeiro sinal de progresso: não um grande salto, mas uma continuidade. Porque mudança não acontece quando você acerta, e sim quando você deixa de abandonar o caminho toda vez que sente medo.

O que antes parecia potencial desperdiçado torna-se crescimento real quando o sistema interno entende que é seguro continuar.